domingo, 28 de fevereiro de 2010

A mulher de vermelho

Beck - Femme Fatale
Entrou no supermercado e pendurou um cesto no braço. A cada passo que dava a saia curta subia um pouco. O salto dos seus sapatos vermelhos ressoava pelos corredores vazios. Passou pelas garrafas de vinho e parou. Depois foi à peixaria e pediu duas postas de salmão fresco. Tinha que ser fresco. À volta agarrou no vinho branco que tinha escolhido antes. Ao pagar, o empregado não tirou os olhos das suas unhas intensamente pintadas de vermelho. Ela percebeu e gostou da sensação que isso lhe criou. Ao chegar a casa preparou o jantar e pôs a mesa. Havia dois pratos e dois copos. Colocou uma vela no centro, mas não a acendeu de imediato. Abriu a garrafa de vinho. Deixou o vinho respirar enquanto servia o peixe. Serviu o vinho. Acendeu a vela. Esperou um pouco. E depois começou a comer. No final de jantar pôs um cigarro na berma da mesa, com o filtro para fora. Levou outro à boca e acendeu-o. Quando terminou, pegou no outro prato, envolveu-o em película transparente e guardou-o no frigorífico. Foi deitar-se. Aninhou-se no único lado da cama que estava remexido. Enquanto adormecia, chorou um pouco. Não muito. Já tenho almoço para amanhã, pensou.

sexta-feira, 26 de fevereiro de 2010

O homem que um dia apareceu num filme

Samuel Úria - Não Arrastes o Meu Caixão

Entrei ferozmente naquele edifício. Percorri os corredores.
Abri todas as portas sem a encontrar. Por fim, vi a minha filha num dos quartos. A tua mãe, perguntei. Levaram-na para a morgue, disse ela. Tudo começou há cinco anos atrás. A minha mulher combinou almoçar comigo no restaurante simpático onde costumávamos ir para comemorar. Chegou atrasada. Estava casada comigo há dezanove anos e continuava uma mulher bonita. Ao olhá-la, não conseguia disfarçar o que sentia. Deu-me um beijo e sentou-se. Pediu um vinho branco. Olhava muito para as mãos. Quando o vinho chegou, deu um gole e disse, Vou sair de casa. De tudo o que poderia dizer, isto era o que menos esperava ouvir. Disse-me que tinha conhecido outra pessoa, que estava apaixonada. Eu perguntei quem era, se era mais novo, o que fazia, onde se tinham conhecido. Ela manteve-se em silêncio. Mais tarde, pensei que talvez fosse mentira. Talvez não tenha arranjado uma forma digna de dizer que já não me queria. É impossível saber se foi a minha mulher que naquele dia planeou encontrar-se comigo num restaurante para dizer que já não queria viver comigo, ou se era apenas um sintoma precoce. Só um ano depois descobrimos que tinha cancro no cérebro. Quando soube, quis ir buscá-la. Ela não quis voltar. Não sei se foi por orgulho ou por que já não me amava. Nunca permitiu que a fosse ver ao hospital. À frente da minha filha, o médico perguntou se eu queria ir até à morgue para a ver. Eu pensei um pouco e disse que não. Naquele momento não senti raiva. Senti-me grato pelo que a minha mulher tinha feito por mim.

quarta-feira, 24 de fevereiro de 2010

A vizinha de cima

Nothing People - Enemy With an Invitation
A campainha tocou. Todas as noites daquela semana ela pôs a lingerie vermelha e o robe de seda e esperou. Mas a campainha não tocou em nenhum dia daquela semana. Apenas no último dia daquela longa semana a campainha tocou. Não estava preparada. Não tinha tomado banho nem posto perfume. Foi aninhada que abriu a porta. Fez um gesto para ele entrar. Se faz favor, disse. Era um homem alto e firme. Entrou e sentou-se no sofá. Cruzou as pernas e bateu duas vezes com a mão no assento. Ela sentou-se ao lado dele. Quanto é para mim, perguntou ele com arrogância. Ela afastou-se e pôs-se na berma do sofá. Tirou um cigarro e acendeu-o. Foi com fumo a sair-lhe da boca que disse o preço. Era pouco, pensou ele. Depois agarrou-lhe no braço e dominou-a. Lambeu e mordeu-lhe o pescoço. Fê-la deitar-se com a cara para baixo. Passou a mão forte pelas suas costas parcialmente despidas. Depois colocou-se em cima dela, esmagando-a contra as almofadas. Foi rápido para ele. Não tão rápido para ela. Quando terminou, levantou-se rapidamente e subiu as calças. Tirou duas notas da carteira e atirou-as para cima da mesa. Saiu. Ela estava ainda no sofá, sentindo-se dolorosa e vulnerável. Olhou para as notas e fechou os olhos. Já acabou, pensou.