sexta-feira, 26 de fevereiro de 2010

O homem que um dia apareceu num filme

Samuel Úria - Não Arrastes o Meu Caixão

Entrei ferozmente naquele edifício. Percorri os corredores.
Abri todas as portas sem a encontrar. Por fim, vi a minha filha num dos quartos. A tua mãe, perguntei. Levaram-na para a morgue, disse ela. Tudo começou há cinco anos atrás. A minha mulher combinou almoçar comigo no restaurante simpático onde costumávamos ir para comemorar. Chegou atrasada. Estava casada comigo há dezanove anos e continuava uma mulher bonita. Ao olhá-la, não conseguia disfarçar o que sentia. Deu-me um beijo e sentou-se. Pediu um vinho branco. Olhava muito para as mãos. Quando o vinho chegou, deu um gole e disse, Vou sair de casa. De tudo o que poderia dizer, isto era o que menos esperava ouvir. Disse-me que tinha conhecido outra pessoa, que estava apaixonada. Eu perguntei quem era, se era mais novo, o que fazia, onde se tinham conhecido. Ela manteve-se em silêncio. Mais tarde, pensei que talvez fosse mentira. Talvez não tenha arranjado uma forma digna de dizer que já não me queria. É impossível saber se foi a minha mulher que naquele dia planeou encontrar-se comigo num restaurante para dizer que já não queria viver comigo, ou se era apenas um sintoma precoce. Só um ano depois descobrimos que tinha cancro no cérebro. Quando soube, quis ir buscá-la. Ela não quis voltar. Não sei se foi por orgulho ou por que já não me amava. Nunca permitiu que a fosse ver ao hospital. À frente da minha filha, o médico perguntou se eu queria ir até à morgue para a ver. Eu pensei um pouco e disse que não. Naquele momento não senti raiva. Senti-me grato pelo que a minha mulher tinha feito por mim.

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